O MENINO DOS OLHOS VERMELHOS - CAPÍTULO 1: Edgar Salazar

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Era uma noite nublada do inverno de 1823, na pequena cidade de Santa Brígida, oeste do país de Tereus. A lua passeava timidamente por entre nuvens enquanto duas parteiras tentavam, exaustivamente, retirar a criança do ventre de sua mãe. O pai permanecia sentado ao lado da lareira observando os gemidos de sacrifício de sua esposa e orando para que tudo terminasse bem e sua criança nascesse com saúde. Lá fora, o vento forte fazia ringir toda a casa de madeira e ameaçava romper as vidraças das janelas, mas isso nem era percebido naquela atmosfera tensa do parto. A lareira, abastecida com alguns poucos gravetos, já não era suficiente para afugentar o frio que adentrava o quarto e vez ou outra ameaçava apagar de vez o fogo que aquecia o ambiente.
Por algum motivo, a criança relutava em vir ao mundo e apesar do frio que fazia o suor escorria nas faces daquelas quatro pessoas. Duas negras, trazidas da cidade vizinha para realizar aquele parto, empurravam e massageavam a barriga de Anne em movimentos síncronos, devidamente treinados pelos anos de experiência, enquanto a senhora de cabelos negros e longos agarrava-se com força à beira da cama e se contorcia inteiramente de dor.
De repente, uma primeira rajada de vento fez tremer toda a casa e, assustadoramente, uma outra estilhaçou a vidraça da janela da cozinha. O vento frio e cortante irrompeu os cômodos da casa e chegou ao quarto em segundos, fazendo com que Júlio corresse para fechar a porta. Juntamente com o ranger da chave ao dar sua primeira volta na fechadura ouviu-se o choro da criança.

— É um menino, senhor. — disse a parteira mais velha, chamada pelo nome de Maria.
— Graças a Deus! — sussurraram os pais do pequeno garoto.
— Deixe-me pegar meu filho.
— Só um minuto, senhor. Precisamos limpá-lo primeiro.

 Júlio Salazar era um homem alto e forte, de cabelos ruivos já meio grisalhos, uma barba imensa que lhe cobria boa parte do rosto e apoiava-se sempre a uma bengala de madeira por conta de um antigo ferimento de guerra. Era conhecido por sua serenidade e paciência inesgotável, típica dos agricultores imigrantes vindos dos países do sul. Conhecera Anne em Santa Brígida há pouco mais de um ano e se casaram ao descobrirem da gravidez inesperada. Ela era filha de comerciantes, mas se tornara órfã ainda quando criança ao ver seus pais morrendo na mesma guerra em que Júlio lutara.

­— Por céus! Nossas preces foram atendidas, Anne. Um menino, como havíamos pedido.

A mulher olhou para o marido com uma reconhecível expressão de dever cumprido, mas nada respondeu. Estava sem forças.
Ao terminar de limpar o pequeno menino, Maria o levou primeiro aos braços da mãe, como era de costume naquela região. Anne agasalhou o bebê em seu colo e lhe deu a benção de boas vindas e chamou seu marido para pegar a criança e dar-lhe o nome, pois no país de Tereus era sempre o pai que nomeava seus filhos. Júlio se levantou da cadeira onde estivera sentado durante boa parte da noite e se aproximava quanto Anne soltou um grito apavorante e lançou a criança longe, que só não caiu no chão porque uma das parteiras o agarrou.

— Demônio, matem-no! Essa criança está possuída. ­— gritava Anne enfurecida e amedrontada.

A parteira que agarrou a criança também ficou repentinamente aterrorizada e aos gritos jogou o bebê no colo do pai, que estava completamente confuso. Foi nesse momento que Júlio entendeu o motivo de todo aquele terror. O garoto tinha olhos cujas córneas eram vermelhas vibrantes, como chamas incendiando seu interior. Algo nunca visto antes por ele ou qualquer outra pessoa deste mundo. Por um momento o homem também se assustou com aqueles olhos tão vermelhos e intensos, mas a criança se acalmou em seus braços como se tivesse ali encontrado alguém de extrema confiança e Júlio olhou para sua esposa deitada na cama e para as parteiras amedrontadas no quanto do quarto e serenamente proclamou em alto e bom som:

— A esta criança, gerada de meu sangue e herdeira de minha linhagem, dou o nome de Edgar Salazar.

Anne ficou descontrolada e, mesmo sem forças, tentava se lançar da cama em direção ao marido.

— Maldito! Essa criança não é deste mundo e eu o amaldiçoo por ter nascido do meu ventre. Ordeno que o mate! — gritava a mãe de Edgar — Você não vê esses olhos? É um demônio, eu sei!
— Cale-se, mulher! Você não sabe o que está falando, é apenas uma criança.

Enquanto o casal discutia a porta se abriu e as duas parteiras fugiram amedrontadas deixando entrar o vento forte que abafara toda aquela gritaria. Júlio fechou a porta, colocou o pequeno Edgar no berço próximo à lareira para que ficasse aquecido e saiu para buscar mais lenha.
Está certo que seus olhos são realmente assustadores, parecem enxergar-me por dentro, mas ele é meu filho, meu sangue e não vou acabar com a vida de uma pobre criança por causa das loucuras de Anne. — pensava Júlio enquanto recolhia o pouco de lenha que estocara no galpão.
Nem dez minutos haviam se passado e, ao ouvir um barulho dentro da casa, Júlio correu para ver o que estava acontecendo e mal pôde acreditar no que presenciou. Sua mulher havia se jogado da cama e com um tesoura na mão arrastava-se em direção ao berço para matar Edgar. Enraivecido, o homem arrancou a tesoura da esposa e a amarrou na cama com pedaços de corda e lençóis.

— Você está louca, completamente louca! Como pode pensar em matar seu próprio filho? Assim que estiver em condições de andar, pegue suas coisas e suma daqui. Nunca será a mãe que meu filho merece. — disse Júlio enquanto amarrava sua esposa.
— Como tem coragem de defender essa coisa? Assim que souberem o que você está fazendo, expulsarão você dessa cidade e acabarão com esse demônio. — gritou enrouquecida a mulher amarrada.

Júlio preferiu não responder, apenas amordaçou sua esposa para que ela não continuasse a gritar palavras de ódio e colocou a criança sobre os seios da mãe para que o amamentasse, mesmo que ela não o quisesse fazer. 
Pela manhã, alguns aldeões e moradores da cidade já rondavam a casa, curiosos para saber se os rumores espalhados pelas parteiras eram verdade. Alguns deles chegaram a bater na porta, mas Júlio se recusou a atender.

— Vão embora, seus tolos! Aqui não há nada que interesse a vocês. — dizia o pai de Edgar tentando mantê-lo protegido.

Ele sabia que Anne estava certa. As pessoas de Santa Brígida eram, em maioria, fanáticos religiosos como ela e que interpretariam aquela característica peculiar da criança com uma aberração, uma ofensa às suas crenças divinas. Os rumores estavam se espalhando e logo grande parte da população estaria ali para forçar-lhe a mostrar o pequeno Edgar, e isso seria seu fim.

— Tenho que fugir. — pensou.

Era o melhor a se fazer. Se queria realmente salvar seu filho teria que abandonar a cidade e procurar algum lugar isolado, onde pudesse criá-lo com maior segurança. Foi aí que Júlio se lembrou de uma propriedade que seu pai havia deixado de herança para seu falecido irmão e que agora se encontrava abandonada. O sítio era pequeno e a cabana precisaria de uma boa reforma e limpeza, mas era o lugar ideal, fora da cidade e dos olhares preconceituosos daquele povo.

— Vamos Edgar, precisamos nos apressar. Logo aqueles vermes estarão aqui para nos aborrecer. — falava com o menino como se ele pudesse entendê-lo.

Anne ainda dormia, exausta, enquanto seu marido juntava algumas roupas e calçados em uma trouxa feita com um cobertor de lã. Num frasco de vidro, Júlio coletou certa quantidade de leite dos seios de sua mulher para alimentar o garoto durante a viagem e, ao perceber o quanto ela estava debilitada, seu coração encheu-se de remorso e tristeza por não poder ficar para cuidar daquela que tanto amou. Retirou então a mordaça e desamarrou sua mulher.

— Perdoe-me meu amor. Não queria que as coisas acabassem assim. Sempre imaginei que seríamos nós três, mas você se deixou cegar por essa crença estúpida e agora eu nada posso fazer para te levar comigo. Tenho certeza que a partir de hoje a vida será bem mais difícil para mim e para você, mas saiba que desejo o melhor em sua nova vida e quem sabe um dia nos vemos novamente e você possa aceitar nosso filho como ele realmente é. Eu sempre te amarei. — sussurrou Júlio emocionado, próximo ao ouvido de Anne na esperança que ela pudesse lhe escutar mesmo dormindo.

Nesse instante, o homem ouviu uma gritaria começando do lado de fora da casa. Eles chegaram — pensou. E uma voz se destacava entre tantas outras.

— Salazar, abra a porta! Estamos sabendo que esconde um demônio e viemos buscá-lo, abra a porta ou teremos que arrombá-la.

Maldito Vladimir Frasão e sua corja de fanáticos! — sussurrou para si mesmo enquanto acomodava o menino em uma espécie de bolsa presa às suas costas.

— Não há demônio nenhum aqui, seus intrometidos! Voltem para suas casas e deixem de perturbar a vida alheia! — respondeu Júlio.
— Viemos aqui para cumprir a vontade do Senhor e só iremos embora depois que mandarmos esse demônio de volta para o buraco de onde saiu. Abra a porta, Salazar! É meu último aviso.

Pela vidraça quebrada, Júlio pôde enxergar um grupo de aproximadamente duzentas pessoas com pedaços de madeira, ferramentas e pedras nas mãos, prontos para invadirem a casa, e à frente, um homem baixo e gordo, com um enorme crucifixo pendurado no pescoço liderava a multidão.

— Vladimir, seu miserável! — pensou enraivecido o pai de Edgar.

Nesse momento, uma pedra quebrou a vidraça da janela do quarto e a multidão começou a avançar. Júlio pegou tudo que conseguia carregar e correu mancando com sua velha bengala para a porta dos fundos, era a única saída. Já do lado de fora, entrou no cafezal e permaneceu correndo sem olhar para trás, subindo a colina em direção ao norte.
O inverno daquele ano castigou muitas plantações, inclusive sua lavoura de café. As folhas secas, queimadas pelas constantes geadas, formavam um cenário único e tenebroso, que parecia uma cascata cinzenta descendo colina abaixo sob um gélido pôr-do-sol.
Do alto da colina, Júlio pôde ouvir quando arrombaram a porta e entraram na casa à sua procura, mas ele e Edgar já estavam escondidos na velha caixa d’água, a uma distância segura onde eles não o encontrariam.
Revoltados por não conseguirem pegar o tal demônio, atearam fogo na casa sem qualquer piedade. E da escuridão, o pai do pequeno Edgar pôde assistir as chamas, tão ardentes quanto os olhos de seu filho, consumirem sua casa e sua esposa, num espetáculo incrivelmente triste que dilacerou completamente o coração daquele pobre homem.



Girotto Brito

Escritor

Poeta e contista, autor do livro "Os três lados da moeda: vida e morte em poesia" e colaborador em diversas antologias de contos.

8 comentários:

  1. Gostei muito do enredo, mas discordo do sentimento dos pais, acho que a Mãe deveria estar no lugar do pai.
    Aguardando a continuação =D

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  2. Também gostei muito desse capítulo inicial. Apesar das mães geralmente serem mais atenciosas e receptivas aos filhos, isso não é uma regra, há muitas mães nesse mundo que, por um motivo ou outro, não amam seus filhos como deveriam e há até casos de mães que matam seus filhos. Nesse caso, eu entendi que a mãe era meio fanática em suas crenças e esse fanatismo a impediu de estabelecer laços pelo seu filho recém nascido e o pai, livre de preconceitos, assumiu o papel de cuidar e salvar seu filho. :)

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  3. Bem legal cara. NO aguardo da parte 2 :D

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  4. Adorei o 1º capítulo e tenho certeza que vou curtir toda a estória. Vejamos o que é e o que será desse menino de olhos vermelhos.

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    1. Que bom que gostou meu amigo. Já tem outros capítulos disponíveis para leitura. Grande abraço.

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  5. Trama muito bem elaborada. Me conta depois de onde veio a inspiração.

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